quarta-feira, 12 de novembro de 2014

No meio fio 2

Mais de um ano se passou. E continuo vendo-a diariamente. Já a sinto como alguém conhecido, familiar. Todo dia ela está ali, no meu caminho como uma pedra, um obstáculo que me incomoda, que me sacode, me machuca, me sufoca.

Mas, hoje ela não dormia, nem olhava ao longe, nem arrumava suas coisas, nem costurava seu velho cobertor.
Hoje, uma tarde gelada e chuvosa, na saída do Elevado que dá para o Largo do Arouche, sem calçada ou cobertura, com os pés expostos na via pública, vestindo uma camiseta regata, com seus grossos braços grandes e negros de fora, ela segurava uma caneta, e escrevia...

Alheia à chuva que molhava o papel, alheia ao frio e aos carros que, como o meu, poderiam passar por sobre suas pernas, ela simplesmente, escrevia...
Alheia à miséria, ao descaso, ao abandono. Alheia à falta de sol, de abraço, de afeto, de comida. Alheia à falta de dinheiro, de roupa, de amparo. Alheia à falta de ar... ela produzia uma abundância de palavras.

Em defesa da escola

Uma conversa de bar e lá vou eu, link de memória acessado, viajar para um tempo muito feliz, o tempo da escola. O papo girava em torno do interesse de uns em, um dia pais, eles mesmos ministrarem a educação escolar de seus filhos em casa, como alguns casos em países europeus ou nos Estados Unidos, que ouvimos falar.

Na hora, manifestei minha indignação e revolta com tamanha decisão. Acho que fui até mesmo um pouco radical ao defender minha opinião, dizendo que seria muita pretensão os pais acharem que detêm todo o conhecimento que é ministrado na escola, para transmitir aos filhos.
Mas, para mim, essa questão vai muito, muito além de conhecimento formal a ser transmitido, matérias, tabuadas, mapas mundis, tabelas periódicas, fórmulas matemáticas, redações, gramática.

A escola é o momento de socialização da criança, primeiro momento em que ela se encontra como ser individual dentro de um coletivo que não é sua família. Primeira vez na vida em que ela não tem a proteção (no bom e no mau sentido) dos pais, avós, tios, irmãos, babás. É o primeiro momento dela consigo mesma e dela com o mundo.
Uma das minhas primeiras memórias de infância é justamente a minha ansiedade em entrar na escola. Meus irmãos mais velhos já frequentavam, e eu chorava para ir com eles. Até que o lindo dia chegou. Me lembro de cada detalhe. O uniforme: camiseta branca, shortinho vermelho com elástico na perna, meias brancas até o joelho, tênis conga vermelho, mochilinha com todo o material, lancheira... tudo cheirando a novinho.

Minha alegria foi tanta que descolei da mão da minha mãe já na esquina da escola, e corri para o portão, eufórica, feliz, realizada. Eu, enfim, estava na escola. Lembro com grande carinho do cheiro de tinta nova da pré-escola recém-inaugurada, e o cheiro de flúor que eles nos davam para os dentes. Lembro da professora afetiva, dos amigos, da turminha bagunceira.
E os anos foram passando, e eu não perdia um dia de aula, nem quando estava gripada ou com febre, nem doente queria faltar. Minha mãe colaborava, e dizia que escola é o compromisso da criança, como trabalhar é dos pais, e não se falta à toa. Eu seguia à risca.

Era CDF mesmo, admito. Estudiosa, fazia minhas lições e dos colegas. Os trabalhos em grupo adorava fazer em minha casa, minha mãe também adorava, erámos as perfeitas anfitriãs. Sempre tinha lanchinho da tarde, carinhosamente preparado com bolo de fubá, pão fresquinho, suco, leite com chocolate. Era minha realização.
E fui crescendo, amando e detestando alguns professores, mas respeitando todos, sempre, como me orientava minha mãe. Para ela, professor era sagrado e estava sempre com a razão, e eu devia obedecer. Essa ordem eu, às vezes, seguia, às vezes, não, pois adorava argumentar minhas opiniões com os professores, cheia de razão e opinião aos 9 anos de idade.

Mas, por sorte, tenho memória de muitos mais professores bons do que ruins. Embora, eu estudasse em colégio público de periferia, tive a sorte de ter mestres incríveis, idealistas, politizados, românticos, apaixonados pela educação.
Dos ruins, lembro de poucos, não esqueço uma que amava os Generais Ernesto Geisel e Garrastazu Médici, em plena ditadura militar brasileira. Só muitos anos depois, fui entender o quão ilógica era essa admiração dela, mas na época achava engraçado. Ela era a primeira a organizar a turma para cantar o Hino Nacional Brasileiro e eu, caxias e inocente como era, adorava entoar nosso amor à pátria.

E o primeiro beijo, claro, foi em frente à escola. O primeiro amor de infância também. As primeiras decepções. As grandes amizades...
Hoje, após tantos anos de estudo, educação infantil, ensino fundamental, médio, duas graduações e duas pós, sempre sentirei falta da escola. Sempre, de alguma maneira, estou de volta aos bancos escolares, seja por um curso de idiomas, uma atualização, uma especialização.

Mesmo já tendo passado para o lado de quem ensina, com quase 40 anos, ainda sou aquela mesma aluna, atenta ao professor, com sede de aprender, de conhecer amigos, de fazer parte, de pertencer.
Ainda bem que meus pais não me furtaram disso.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Abaixo às esteiras


Não gosto de esteiras. Hoje, minha caminhada foi nas ruas do meu bairro, sentindo o sol na pele e o vento na cara. Descobri muitas coisas que não via. Vi casas de todas as cores, grandes e pequenas, novas, reformadas, velhas, em ruínas.

Ah, e os jardins. Vi muitos deles, com flores de todos os tipos, rosas, alecrins, margaridas, tulipas, begônias, e outras tantas que não sei o nome. (Acabo de me dar conta de que não sei identificar os nomes de muitas flores, e isso é triste!).

Descobri, feliz, que no meu bairro as pessoas ainda cultivam flores e plantas. Senti muitos aromas. A despeito da verticalização do bairro, muitas casas ainda resistem, fortes, soberanas com suas varandas, redes e quintais.

Vi travesseiros e lençóis nas janelas para tomar sol, roupas nos varais e crianças brincando. Vi velhos nas calçadas. Lembrei da minha infância e do meu avô.

Também ouvi muita música que vinha das casas. E cheirinho de comida começando a ser preparada.

Vi contrastes grandes na arquitetura do meu bairro. Vi barracos e lindas casas planejadas. Vi uma pequena favela arborizada e grandes casas imponentes de cimento, concreto, mármore e vidros, porém, sem uma única planta.
Vi marcenarias, oficinas mecânicas, padarias, bares. Vi as pessoas que trabalham no meu bairro.
Interagi com as pessoas, umas me davam bom dia, outras só olhavam, muitos ignoravam. Mas, eu as via.  

Ah, vi também os animais. Cachorros, gatos, passarinhos. Ouvi seus sons... e seus silêncios. Vi suas grades. Sua segurança e sua prisão.

Amanhã, outros caminhos me esperam. E outras descobertas... que, da esteira, jamais me descortinariam.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Dois anjos


Admirável e estranho mundo novo. Duas mortes perto de mim na mesma semana. Ambas me chegaram pelo Facebook. “Dor sem fim”, dizia uma amiga que perdera a pequena filhinha ainda no ventre. “Um anjo subiu ao céu”, dizia outra amiga, sobre um amigo comum, ex-colega de trabalho, que partiu subitamente aos 23 anos de idade.

Nem telefonemas, nem visitas, nem velórios. Difícil compreender a morte, ainda mais quando ela não se materializa na nossa frente. Ainda mais quando é de duas crianças, uma que nem nasceu, e outra que tão pouco viveu.

De um, guardo recordações alegres, pessoa bem-humorada, chegava sempre sorrindo na redação e tinha uma piada e brincadeira pra tudo. Quietinho no início, foi ganhando espaço no trabalho e no coração de todos. Meu colega na ginástica laboral (ainda me perguntou quem iria cobrar que ele fizesse o chato exercício quando saí da empresa), e das pautas sobre celebridades, sempre com um comentário ácido e divertido.

Da pequenina, só sabia que era muito esperada e amada por seus pais, sua irmã, seus avós, parentes e amigos. Não pude ligar para sua mãe, não encontrei palavras, meu coração ficou calado, pois por quatro vezes senti o que ela sente agora. E, por quatro vezes, não soube, não assimilei, não registrei o que me disseram, o que ouvi, nem o tamanho da dor do meu coração. Por quatro vezes, na verdade, não queria ouvir nada. Muito menos dizer. Não havia palavra.

Ainda ficou um abraço, que quero muito lhe dar. Que está guardado no meu peito para quando pudermos nos ver. Não quero ir agora, porque sei que estará rodeada de pessoas, e que muitas vezes, só desejará o silêncio.

Não pude me despedir do meu jovem amigo, levado para perto da família numa cidade muito distante. Mas, pude vê-lo muito vivo nas fotos com os amigos, bonito, sorrindo numa mesa de bar. E também pude ver as inúmeras declarações de amor e amizade, e o pesar dos muitos amigos saudosos.

Em tempos de redes sociais, até a morte é virtual. Aliás, ela sempre foi, assim como a vida que achamos que temos nas mãos, mas nos escapa após um leve suspiro, que nos devolve para a nossa verdadeira existência. E essa, de onde estamos agora, não conseguimos enxergar.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Barbárie urbana


Não gosto de generalizações, senso comum, preconceitos, reducionismos. Detesto. Acho que em todas as classes sociais, todas as profissões, todas as nacionalidades, todas as religiões, todos os times de futebol, todas as idades têm gente legal, gente chata, gente do bem, gente do mal, gente alegre, gente triste. Enfim, toda a diversidade humana.

Apesar disso, estou quase cedendo à máxima de que todo motoboy é maluco, mal-educado, imprudente, grosseiro, desumano e irresponsável.

Hoje, ouvi todos os impropérios, agressões e ofensas, no trânsito, de três motoboys, apenas pelo fato de, ao mudar de faixa, e o farol fechar, ficar por cerca de 2 minutos obstruindo a passagem/corredor que eles julgam ser apenas para uso deles, e que ninguém tem o direito de cruzar ou parar.

Quanta grosseria, violência, falta de delicadeza, de humanidade, de caráter.

Recentemente, um outro desumanizado, na ânsia da sua pressa desmedida, derrubou um motociclista, para sair de sua frente, provocando uma grave lesão no ombro da vítima, uma cirurgia complicadíssima, dores absurdas, um mês imobilizado e afastamento de suas atividades profissionais. Isso porque teve sorte de não perder a vida.

Nem mesmo a antiga solidariedade entre os que andam sobre duas rodas existe mais. O causador do acidente viu que derrubou uma pessoa e, mesmo assim, seguiu adiante, sem parar para prestar socorro, sem o mínimo de preocupação com outro ser humano.

Pressa, pressão no trabalho, falta de grana, problemas familiares, estresse com o trânsito caótico, nada disso, aliás, motivo nenhum na vida justifica tamanho embrutecimento humano. 

Queria saber como resolver isso, como colocar amor em corações tão endurecidos...

sábado, 26 de maio de 2012

No meio fio


Todos os dias eu a vejo por poucos segundos no caminho do trabalho. Me intriga o lugar que ela escolheu como casa. O meio fio sem calçada da saída do Elevado que leva ao Largo do Arouche. Por vezes, temo que, dormindo, ele role para a pista.

Escolher talvez não seja o termo correto, na verdade, falta de escolha. Mas, penso: há tantos lugares cobertos, protegidos da chuva e dos carros. Por que ali? Será mais seguro do ataque de outros moradores de rua, ou mesmo de policiais ou jovens de classe média que têm como diversão humilhar quem já perdeu tudo.  

Outro dia a vi acordada, sentada em seu cobertor. O olhar alcançava o nada. Talvez lembrasse um passado dolorido (mais?) ou até mesmo memórias boas de um tempo que se foi. Seu olhar era tão vazio, que nem sequer pedia socorro.

Terá filhos, netos, irmãos, parentes.... amigos?

Velha e obesa, imagino que provavelmente tenha problemas de saúde, mas certamente nada pior do que a solidão e a falta de um lar. Terá sido abandonada? Terá abandonado? Penso que pode ter problemas mentais ou os tenha quem a observa todo dia como eu e nada faça.

Mas, ontem ela não estava. Só o cobertor permanecia lá. Imagino as milhares de coisas que podem ter-lhe acontecido, inclusive o pior, nada!

domingo, 25 de março de 2012

Prata não!

Todas as manhãs eles estavam lá. Cada dia os via em maior quantidade, intrusos, rebeldes, sem convite ou permissão para ali estar.

Tesoura em mãos... e, com a minha pouca habilidade, acabava estirpando outros tantos que eu não queria, mas eu não desistia de me livrar deles... minuciosamente, cirurgicamente, quase que religiosamente.

Mas, dias depois, lá estavam eles, os mesmos estirpados e outros em outras partes da minha pobre cabecinha.   

Umas me diziam “você tem sorte, eu os tenho desde os 25 anos”.

Outras “são poucos ainda, precisa ver os meus, já tomaram tudo”.

Fiquei assim, nessa luta injusta durante quase um ano, acho. Firme em não me deixar vencer por eles, e continuar sendo exatamente quem eu era, sem alterações químicas... sem tintas rejuvenescedoras, sem disfarçar os anos.

Mas, confesso que aos 37 aqueles poucos fios pratas me incomodavam mais do que as famigeradas estrias ou celulites.

Chegou o dia, decidi me livrar deles radicalmente. Apelar para aquela medida drástica que eu tentava adiar ao máximo.

Pouco experiente no ramo, comprei um produto fiel às minhas madeixas: castanho escuro. E lá vou eu para a atrapalhação geral. Na hora de misturar a guloseima toda, pobre do meu banheiro, das paredes, pia, chão e toalhas. Tudo castanho escuro...

O pior não foram os elementos externos. Eu mesmo estava toda castanha escura, só escaparam as mãos, protegidas por providenciais luvas cedidas pelo fabricante. Porém, rosto, braços, pescoço, até pernas ficaram manchados.

Pânico geral, a bucha com sabonete foi a primeira coisa que avistei para começar a me esfregar inteira... Achei que aquela coisa não sairia nunca mais, e eu iria ter que andar de burca o resto da minha vida.

Verdade que não saíram rápido, mas foram saindo... para a minha salvação e do meu corpo, já imaginando-se fechado em roupas longas e só os olhos de fora no verão escaldante que tem feito em São Paulo.

Bom, passados os minutos de praxe, chuveiro e espelho. Achei que estavam um pouco mais pretos que o normal. Mas, ao esperar secar, o choque: Pretos? Estou a própria Mortiça da Família Adams.

Mas me conformei logo - porque sou daquelas que sempre vêem o lado bom das coisas, até nas piores desgraças - melhor assim do que loira, como dizem que é o destino de todas nós. Isso não, nunca!

Agora é só esperar as 28 lavagens para tudo voltar ao normal... e eu ter que encontrar outra solução para esconder aqueles insensíveis e irritantes fios levemente prateados que insistem em me lembrar que já não sou uma adolescente.