quarta-feira, 6 de julho de 2011

O menino e a máquina de escrever

Seus olhos eram só contentamento quando, pela primeira vez, em sua pequena existência de 4 anos, seu pai, enfim, o deixara tocar em sua velha máquina de escrever.
Contemplou-a primeiro, demoradamente, excitado, assustado, admirado. Quantas noites vira e ouvira o pai trabalhar nela, aquele barulhinho das teclas embalando o seu sono.
Tinha perdido a conta das vezes que, sorrateiramente, teria tentado se aproximar dela e tocá-la levemente e ser surpreendido por um grito agudo, rude, inquisidor.
- Já falei para não por as mãos aí, menino. Esse é o meu trabalho, criança não mexe.
Gostava de vê-lo trabalhando, datilografando, horas e horas, noites e noites. Não sabia e nem questionava o que ia escrito ali, apenas gostava de olhar o pai. Sério, sempre com um cigarro na mão, a testa franzida denunciando ao pequeno menino que o que ia ali naquelas folhas escritas e reescritas era coisa séria.
- Coisa de gente grande, garoto!
Aquela velha Olivetti enferrujada, para ele, significava uma engenhoca complexa, uma máquina fazedora de palavras, códigos que ele não dominava, inacessíveis, inatingíveis.
Mas, aquele dia o pai acordou diferente. Apesar de rude, sempre lhe dava uns tapinhas nas costas quando via o menino acordar e, com o olhar ainda perdido, ir procurar seu leite na cozinha.
Os dois irmãos, ainda muito pequenos, eram mais assunto da mãe. Mas, ele pode-se dizer que já estabelecia alguma relação com o velho, uma certa cumplicidade de homens, um acordo velado, sem palavras. E ele se sentia importante por isso.
Não que o pai fosse carinhoso, mas o menino sentia que podia confiar nele, apesar do medo e do respeito que, naquelas épocas, provocavam um distanciamento solene entre adultos e crianças. O olhar do pai o confortava, gostava de acordar e vê-lo ali em sua máquina.
Porém, naquela manhã os olhos do pai não permitiram o encontro com os olhos curiosos e ansiosos do menino.
O pequeno até que os procurou, como era de costume, estabelecido pelo convívio diário. Mas, o pai o evitou o quanto pode.
Também não estava sentado em sua máquina, como era de praxe, sempre que o garoto acordava.
Fumava mais do que habitualmente, entrava e saía de casa, se irritou com o cachorro e com o choro persistente do irmão menor.
Depois de momentos de agonia para o menino, veio o tão sonhado convite.
Mas, não veio em palavras. O pai sentou no seu lugar de frente para a máquina, virou para o menino e, num gesto, convidou-o a sentar-se no seu colo.
Tímido, inseguro e quase descrente, o garoto custou a entender o gesto.
- Vem cá, moleque!
Os pequenos olhos verdes do menino ganharam um brilho desconhecido para o pai e, num impulso de criança, ele se jogou para a felicidade.
Passaram ali alguns minutos, não se sabe quantos, o pai a ensinar o funcionamento daquela engenhoca fantástica, que num passe de mágica, registrava o nome do garoto, de sua mãe e seus irmãos, numa folha de papel em branco.
Permitiu até que o menino, que vinha estudando as primeiras letras, ouvindo o soletrar do pai, dedilhasse seus primeiros escritos.
O mundo estava perfeito para o menino, que foi despertado do seu transe de contentamento por um barulho de buzina.
Tirando-lhe delicadamente do colo, o pai vai até a janela e vê o carro que o espera. Rápido, entra no quarto, pega uma mala e sai. Sem palavra, sem olhar.
O menino, o irmão do meio e a mãe com o mais novo no colo, da calçada, avistam o táxi que desce silenciosamente a rua. Nenhum aceno de mão.
O menino procura, mas não encontra os olhos da mãe, que ordena que entrem. Na sala fria e escura, a velha Olivetti ficou entregue ao abandono.
Não, ele não se atreveria. Mesmo 32 anos depois, quando enfim reencontrou o pai, ele jamais se atreveu. Os mesmos olhos verdes e inseguros continuavam ali a espera de um convite.